Cirurgia de catarata no Hospital Escolar Veterinário

Cirurgia de catarata bilateral por facoemulsificação bimanual com implante de lente intraocular num cão 
 
As cataratas são um dos diagnósticos mais frequentes em oftalmologia veterinária, constituindo a principal causa de cegueira em cães. A abordagem cirúrgica é a única resolução eficaz, sendo a facoemulsificação a técnica de eleição. O presente caso clinico descreve a correção cirúrgica de cataratas bilaterais num canídeo pela técnica de facoemulsificação bimanual com implante de lente intraocular.
 
1 Centro de Investigação Interdisciplinar em Sanidade Animal (CIISA), 
Responsável pelo Serviço de Oftalmologia do Hospital Escolar, 
Professora Auxiliar com Agregação da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa.
 
Introdução
O termo “catarata” tem origem na palavra katauraktes, que em Grego significa queda de água. Em medicina, o termo catarata consiste em qualquer opacidade não fisiológica das fibras da lente e/ou da cápsula, independentemente da etiologia, tamanho ou localização (Gelatt & Mackay, 2005). No que diz respeito à classificação das cataratas, esta pode ser feita de acordo com vários critérios, nomeadamente a sua localização, idade de aparecimento, estadio de desenvolvimento e etiologia (Petersen-Jones, 2002).
 
Caso Clínico 
Apresentou-se á consulta de oftalmologia do hospital Escolar da FMV-Ulisboa um cão macho, raça Pastor Alemão, 4 anos de idade, com cegueira bilateral desde há 1 ano.
 
Exame oftálmico
No exame oftalmológico o paciente apresentava dificuldade de orientação na sala, resposta de ameaça negativa bilateralmente, presença de reflexos palpebral, encadeamento, pupilares directo e indirecto bilaterais. A produção lacrimal foi avaliada com recurso ao teste de Schirmer, apresentando-se dentro de parâmetros fisiológicos (20 e 21 mm/min para OD e OS, respetivamente). A medição da pressão intraocular revelou diminuição dos valores para 9 no OD e 10 mm Hg no OS, compatíveis com uveíte bilateral.  Com a sala obscurecida e recorrendo a lâmpada de fenda, procedeu-se à avaliação do segmento anterior, córnea e lente. Foi detetada a presença de cataratas bilaterais, totais, maturas. Mesmo após indução de midríase a observação do fundo do olho foi impossivel, pelo que se impôs a realização de exames complementares de diagnóstico: eletrorretinografia e ecografia ocular. 
 
Electrorretinografia
O animal foi preparado numa sala com luz ambiente, onde se procedeu à colocação dos eléctrodos. Foram colocados três tipos de eléctrodos, utilizados para recolha dos sinais bioeléctricos: i) positivos, colocados em contacto com a córnea; ii) negativos ou de referência, colocados a nível subcutâneo, sobre o arco zigomático, a nível do canto lateral do olho e iii) de terra, colocado sobre a crista occipital (Komaromy et al., 2002, Lima, 2011). De acordo com o temperamento dos animais, pode ser necessário recorrer a ligeira sedação ou mesmo anestesia geral, pelo que os pacientes devem apresentar-se em jejum no dia do exame. Realizou-se o protocolo curto, começando por se testar a funcionalidade da retina em condições de luz ambiente, usando um impulso luminoso de elevada intensidade. Posteriormente, com a luz apagada, foi emitido um novo impulso para testar a retina ao primeiro minuto e após cinco minutos de adaptação ao escuro (Narfstrom et al., 2002). O animal apresentava um traçado dentro de limites fisiológicos.
 
Ultrassonografia Ocular
A ecografia ocular é um exame que geralmente é realizado apenas com anestesia tópica aplicada sob a forma de colírio. Em caso de animais mais agitados, pode recorrer-se a sedação ligeira. Embora não tenha a resolução ideal, utiliza-se geralmente uma sonda de 7,5 mega hertz (MHz), e a interpretação do exame decorre em modo A e B (Petersen-Jones, 2002). Uma sonda com frequências superiores, nomeadamente 10MHz ou 12,5MHz, permite diferenciar claramente as estruturas do segmento posterior, porém, não estando disponível, uma sonda de 7,5 MHz apresenta uma imagem satisfatória, para os propósitos da ecografia ocular como exame pré-cirúrgico (Bjerkås et al., 2009).
Em cataratas maduras ou hipermaturas, a opacidade da lente não permite a avaliação do segmento posterior durante o exame oftálmico. O recurso a ultrassonografia ocular permite descartar de alterações no segmento posterior que podem comprometer ou inviabilizar a cirurgia de cataratas tais como descolamento de retina, mesmo numa fase precoce, podem ser diagnosticadas por ecografia ocular (Gilger, 2003). Outra das utilidades da ultrassonografia ocular como exame pré-cirúrgico de rotina antes da cirurgia de cataratas reside na possibilidade de medição de estruturas intra-oculares. Com efeito, a biometria do segmento anterior, interpretada em modo A, possibilita a medição das dimensões lente, bem como avaliação da espessura da cápsula anterior e posterior, auxiliando o cirurgião na escolha da LIO a introduzir (Bjerkås et al., 2009).
Ambos os exames exibiram resultados dentro de limites fisiológicos. 
O animal foi considerado bom candidato para cirurgia de cataratas.
 
Técnica cirúrgica
A resolução cirúrgica de cataratas por facoemulsificação requer uma preparação meticulosa do equipamento, instrumental cirúrgico e do paciente.
O animal foi admitido, cateterizado na veia safena lateral, pré-medicado com tranquilizante, antibiótico e anti-inflamatório e iniciou a aplicação de colírios com fenilefrina, dexametasona, clornafenicol e flubiprofeno bilateralmente. Procedeu-se à tricotomia e lavagem da zona periocular com iodo-povidona diluída. O paciente foi anestesiado e posicionado em decúbito dorsal, com recurso a um colchão de vácuo, de forma a que a córnea ficasse paralela ao microscópio cirúrgico. Antes de iniciar a cirurgia, foi realizado o bloqueio neuro-muscular com atracúrio e o paciente foi ventilado com ventilador mecânico durante o período de acção do miorrelaxante.
A abordagem cirúrgica foi realizada pela técnica de facoemulsificação bimanual, recorrendo a uma unidade de facoemulsificação e aspiração (Laureate® World Phaco System, Alcon Laboratories), com implantação de Lente intraocular (LIO) bilateral. O primeiro passo consistiu numa incisão side-port, na córnea com faca de 1,2mm, com lâmina em bisel, seguiu-se a injecção de azul de tripano na câmara anterior para coloração da cápsula anterior e sua melhor visualização e um minuto depois instilou-se adrenalina diluída, pelo seu efeito midriático e controlo da produção de fibrina. A incisão principal na córnea foi feita a 3-4 mm do limbo esclerocorneano e realizou-se em dois tempos com duas facas especificamente desenhadas para o efeito. Após realização da incisão de córnea, procedeu-se a injecção de substância viscoelástica a 2%, para manter a forma e pressão da câmara anterior e proteger o endotélio da córnea e a íris. Para realizar a capsulorrexis anterior contínua e curvilínea, fez-se uma punção da cápsula com agulha, realizaram-se duas incisões perpendiculares com tesoura de Vannas e recorreu-se a uma pinça de Utrata para fazer tracção contínua, completar o corte circular e remover a cápsula, de forma a garantir que o defeito criado tivesse cerca de 5-7 mm de diâmetro, forma circular e bordos lisos. A digestão e aspiração da lente por facoemulsificação foi o passo seguinte, pelo método de divide and conquer. Para finalizar, procedeu-se a irrigação-aspiração (I/A) do córtex com a peça de mão de I/A. Injectou-se substância viscoelástica a 1.2% no saco capsular para permitir a sua expansão, seguindo-se então a colocação da LIO através da incisão principal na córnea. Antes de encerrar as incisões de córnea, aspirou-se a substância viscoelástica com a peça de I/A. A sutura das incisões na córnea realizou-se através de pontos em “X” de forma a garantir a estanqueidade da câmara anterior.
 
Evolução clínica
Após a cirurgia, o animal recuperou visão. O animal permaneceu internado por um período de 24 horas para monitorização da pressão intraocular (PIO) e administração de medicação sistémica. A PIO manteve-se dentro de limites fisiológicos. Por via oral, manteve-se o antibiótico e o anti-inflamatório durante 8 dias. Relativamente à medicação tópica, foram prescritos colírios de cloranfenicol e dexametasona de 4 em 4 horas (q4h) e tropicamida BID. Durante as consultas de seguimento, o animal foi sendo avaliado e a frequência de aplicação da medicação tópica foi diminuindo ao longo do tempo.
 
Discussão
O tratamento médico no que concerne as cataratas não possibilita uma abordagem curativa, porque não permite a obtenção de um olho visual mas apenas uma tentativa de desacelerar o envelhecimento natural das estruturas da lente e o avanço da catarata e obter algum conforto para o paciente, que se consegue adaptar à ausência de visão (Williams & Munday, 2006). A única abordagem eficaz para a resolução de cataratas tem de considerar a cirurgia (Lim, Bakker, Waldner, Sandmeyer & Grahn, 2011).
 
Seleção dos pacientes
A cirurgia de cataratas, como qualquer outra intervenção cirúrgica, não está isenta de riscos. Efetivamente, antes de os pacientes serem submetidos a anestesia geral, é fundamental proceder-se a análises sanguíneas para averiguar a existência de alguma doença sistémica concomitante, bem como proceder a avaliação cardíaca.
O exame oftálmico completo é imprescindível para os candidatos a cirurgia de cataratas.
Um historial clínico completo pode auxiliar o oftalmologista na caracterização da catarata. Dentro dos dados importantes a recolher destacam-se a sintomatologia apresentada, a idade do aparecimento e se há suspeita de trauma associado (Adkins & Hendrix, 2003). 
No exame oftálmico é frequente detetar a presença de uveíte, o que não representa uma contra-indicação cirúrgica, mas pode justificar alterações no protocolo terapêutico. Eventuais alterações no endotélio da córnea serão agravadas após a cirurgia, e podem conduzir a opacidade permanente da córnea (Petersen-Jones, 2002).
 O electroretinograma (ERG), que avalia a funcionalidade da retina, e a ecografia ocular, para avaliação das estruturas intraoculares e retrobulbares e despiste de situações que possam implicar contra-indicação cirúrgica, são também indispensáveis. 
A electrorretinografia é um exame não invasivo que permite avaliar a resposta das células fotorreceptoras da retina a um estímulo luminoso, possibilitando descartar algumas das alterações retinianas mais comuns e frequentemente associadas a cataratas, como degenerescência da retina e atrofia progressiva da retina (Gilger, 2003). O protocolo curto, que é o mais prático e eficiente para a prática clínica, é satisfatório como avaliação pré-cirúrgica de candidatos a remoção de catarata (Narfstrom, 2002).
Um dos factores a ter em conta na avaliação de um candidato a cirurgia de cataratas é o seu temperamento. Efectivamente, animais que manifestem comportamento agressivo, sejam muito agitados ou difíceis de controlar, não devem ser submetidos a cirurgia de cataratas (Gelatt, K & Gelatt, J, 2003). Outro dos aspectos a considerar é a colaboração dos tutors, uma vez que o pós-operatório da cirurgia de cataratas é exigente.
 
Anestesia
No que diz respeito à anestesia geral dos canídeos, o bulbo ocular adquire rotação ventromedial no plano cirúrgico pretendido (Thomson, 2007). Esta posição do olho não permite um posicionamento adequado para o acesso à lente, pelo que para resolução cirúrgica de cataratas os pacientes beneficiam de um bloqueio neuromuscular, sendo o besilato de atracúrio o agente preferencial (Glover & Constantinescu, 1997, Thomson, 2007).
 
Técnica cirúrgica
A adaptação da técnica de facoemulsificação à Medicina Veterinária ocorreu entre o final dos anos 70 e o princípio dos anos 80 e os resultados foram tão promissores como na Medicina Humana, pelo que a facoemulsificação acabou por revolucionar a resolução de cataratas e trazer consenso à comunidade de cirurgiões veterinários, tornando-se na técnica mais usada nos dias que correm (Gelatt, K & Gelatt, J, 2003). 
A técnica de facoemulsificação bimanual requer 2 pontos de entrada na córnea, de forma a permitir a manipulação das estruturas intra-oculares com dois instrumentos, sendo a técnica de eleição da autora.
O princípio do aparelho de facoemulsificação consiste na emissão de ultra-sons de baixa intensidade mas de frequência elevada que fragmentam a lente, permitindo a sua posterior aspiração do saco capsular e da câmara anterior (Gilger, 1997).
Embora a técnica de facoemulsificação seja o método de eleição para resolução cirúrgica de cataratas e tenha evoluído muito nos últimos anos, continuam a verificar-se algumas complicações (Klein, Krohne, Moore & Stiles, 2011), dai a importância de uma correta seleção de pacientes, uma boa técnica cirúrgica e um acompanhamento cuidadoso dos casos no pós-operatório. Respeitando estas premissas, obtêm-se taxas de sucesso cirúrgico próximas de 90%.
 
Foto 1 – Incisão side-port na córnea
 
Foto 2 – Injecção de azul tripano
 
Foto 3 – Injecção de adrenalina diluída
 
Foto 4 – Injecção de substância viscoelástica a 2%
 
Foto 5 – Incisão principal da córnea
 
Foto 6 – Capsulorrexis contínua curvilínea
 
Foto 7 – Facoemulsificação da lente
 
Foto 8 – Irrigação-Aspiração do córtex
 
Foto 9 – Implantação da LIO
 
Foto 10 – Aspiração de substância viscoelástica
Foto 11  - OD Pastor Alemão, 4 anos, 1 mês após a cirurgia. Notar a cicatriz na córnea, LIO e opacidade das cápsulas anterior e posterior em redor da LIO (Fotografias originais)
 
Bibliografia
Bjerkås, E., Ekesten, B., Narfström, K. & Grahn, B. (2009). Chapter 5 – Visual impairment. In: Small Animal Ophthalmology, (pp. 175-182). 4th Ed. USA: Elsevier.
Gelatt, K.N. & Gelatt, J.P. (2003) Surgical Procedures of the lens and cataracts. In: K.N. Gelatt & J.P. Gelatt. Small Animal Ophthalmic Surgery: Practical Techniques for the Veterinarian. (pp.286-335). United Kingdom: Elsevier.
Gelatt, K.N., Mackay, E.O. (2005). Prevalence of primary breed-related cataracts in the dog in North America. Veterinary Ophthalmology  8: 101–111.
Gilger, B.C. (1997) Phacoemulsification: Technology and Fundamentals. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, Vol 27, No 5. 1131-1141.
Gilger, B.C. (2003). Lens. In: D. Slatter (Ed.). Textbook of Small Animal Surgery. (pp. 1402-1418) [3rd ed]. Philadelphia: W.B. Saunders.
Glover, T.D. & Constantinescu, G.M. (1997). Surgery for cataracts. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, Vol 27, No 5. 1143-1170.
Klein, H.E., Krohne, S.G., Moore, G.E. & Stiles, J. (2011). Postoperative complications and visual outcomes of phacoemulsification in 103 dogs (179 eyes): 2006–2008. Veterinary Ophthalmology 14, 2, 114–120.
Komáromy, A.M., Brooks, D.E., Dawson, W.W., Källberg, M.E., Ollivier, F.J. & Ofri, R. (2002). Technical issues in electrodiagnostic recording. Veterinary Ophthalmology  5, 2, 85–91.
Narfstrom, K. (2002). Editorial: Electroretinography in veterinary medicine – easy or accurate? Veterinary Ophthalmology 5, 4, 249–251.
Petersen-Jones, S. (2002). The lens. In: S. Petersen-Jones & S. Crispin (Eds.). BSAVA Manual of Small Animal Ophthalmology. (pp. 204-218) [2nd ed]. Gloucester: British Small Animal Association.
Thomson, S. (2007). Ophthalmic surgery. In: C. Seymour & T. Duke-Novakovski (Eds.). BSAVA Manual of canine and feline anaesthesia and analgesia. (pp.183-193). United Kingdom: Lookers.
 
Esmeralda Delgado1
1 Centro de Investigação Interdisciplinar em Sanidade Animal (CIISA), Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.